Kohen fechou os olhos, mas o olfato não lhe permitia tal fuga. O cheiro que invadia as frestas da cabana de pau a pique não era o do peixe assado, nem o do tabaco sagrado queimando na cuia de barro. O fogo de chão, reduzido a brasas tímidas no centro da oca, lutava para manter a umidade afastada. Era um odor químico, metálico, uma mistura oleosa de diesel e terra violentada. O cheiro do Ñamantuza, o grande Rio Doce, morrendo. E, sob essa camada industrial, o cheiro azedo de suor frio que emanava da esteira onde a pequena Muñan ardia em febre.
— Ela não passa desta noite — sussurrou Tainá, a mãe, comprimindo os dedos contra os lábios trêmulos, como se quisesse reter o grito preso na garganta.
Kohen não respondeu. Suas mãos, calejadas pela pesca que já não existia, pairavam sobre o peito da menina sem tocá-la. A febre irradiava como o calor de uma pedra exposta ao sol do meio-dia. Mas não era apenas temperatura. Era o Andl’aman. O desequilíbrio. A doença do esquecimento que, antes de tomar os corpos, tomara a memória da aldeia.
Lá fora, o ruído. Não o canto das cigarras ou o farfalhar das folhas largas das sapucaias. O ruído era mecânico, uma vibração grave que fazia tremer a água nos potes. Motores de barcos de alumínio rasgando a correnteza, vozes ásperas distorcidas por megafones, o som de botas coturno esmagando a vegetação rasteira. O cerco do Doutor Silas. O progresso.
— Kohen! — A voz de Dauá Amaton, o líder político, rompeu a penumbra da cabana. Ele entrou, trazendo consigo a poeira vermelha e o desespero de quem carrega o peso de trezentas vidas nas costas. — Eles deram o ultimato. O sol já se pôs. Silas quer o Termo de Anuência assinado antes que a lua chegue ao meio do céu. Ou as máquinas entram amanhã e derrubam tudo.
Kohen desviou o olhar para o canto escuro da cabana, onde pendia o maracá de seu avô, Xanim. A cabaça polida pelo tempo, o cabo de madeira escura lustrado pelo suor de gerações, as sementes sagradas adormecidas lá dentro. O instrumento parecia julgá-lo em seu silêncio. Sou o Ndondom, o rezador do meu povo, pensava Kohen, sentindo o gosto amargo da derrota. Um curandeiro que esqueceu as palavras porque o barulho do mundo ficou alto demais.
— Se assinarmos — continuou Amaton, a voz falhando, os olhos fixos na menina doente —, eles liberam a estrada. Trazem o médico da cidade. Trazem as pílulas brancas. Muñan vive.
— Se assinarmos — retrucou Kohen, a voz saindo mais rouca e antiga do que ele pretendia —, o bosque das Sapucaias vira fundo de represa. Os ossos de Xanim, os ossos de nossos pais, a história de quem somos… tudo afogado. Muñan viverá num mundo sem chão, Amaton. Que vida é essa onde se respira, mas não se existe?
— Uma menina viva! — Amaton apontou para a menina, a mão tremendo. — A sua medicina falhou, Kohen. Admita. As ervas não baixaram a febre. O rezo antigo não funciona contra doença de branco, contra mercúrio, contra a tristeza de ver o rio morrer. Assine o papel. Dê a ordem espiritual para eu assinar esse termo e acabar logo com isso.
O dilema pairava no ar denso, mais pesado que a fumaça do fumo. Salvar o futuro imediato sacrificando a eternidade, ou segurar a eternidade e ver o futuro morrer de febre bem ali, na esteira de palha.
Kohen tocou a testa de Muñan. Os grafismos de jenipapo — as bolinhas de onça pintadas para dar força e astúcia ao corpo — estavam desbotados, dissolvidos pelo suor. Ela respirava curto, um passarinho ferido caído do ninho. O peito subia e descia num ritmo descompassado, lutando contra um ar que parecia recusar-se a entrar.
Immi xuteh…
A frase surgiu na mente de Kohen não como um pensamento formulado, mas como uma vibração óssea. Não era uma memória intelectual. Era presença. A voz de Xanim, vinda não do passado morto, mas de dentro do tutano, daquele lugar onde o sangue ainda lembrava quem era. E ele entendia com clareza a mensagem.
O corpo é bom…
A filosofia de seu povo não pedia favores aos deuses. Ela não suplicava, não negociava, não se humilhava. Dokôra, o Criador, fizera o mundo xuteh — bom, ordenado, perfeito em sua engrenagem de vida e morte. A doença, o Andl’aman, não era um castigo; era apenas um ruído, uma desordem, uma nota desafinada na música do universo.
O papel do Ndondom não era implorar pela cura, mas ordenar o retorno à configuração original. Lembrar a carne, com autoridade, de que ela foi feita para a vida, não para o definhamento.
— Não podemos assinar — disse Kohen. A palavra saiu sólida.
Ele se levantou. Seus joelhos estalaram com o esforço, mas suas pernas firmaram-se no chão de terra batida como raízes de jequitibá que buscam água no fundo do açude.
— Kohen, por favor… — Amaton deu um passo à frente, a súplica estampada no rosto suado. — Não seja teimoso. Não hoje.
Kohen caminhou até a viga. Estendeu a mão. Seus dedos roçaram a madeira fria do cabo de um maracá. O medo — aquele cheiro azedo que competia com o diesel — tentou paralisá-lo uma última vez. E se falhar? E se for apenas madeira velha e sementes secas? E se o mundo tiver mudado tanto que o mistério não cabe mais aqui?
O megafone lá fora estalou, uma voz metálica distorcida pela estática, violenta em sua artificialidade: “Atenção. O prazo está acabando. O Doutor Silas aguarda o representante com a caneta. Não nos obriguem a entrar.”
O Ruído da Cidade tentava calar a ordem ancestral. O barulho tentava vencer a música.
Kohen fechou os dedos com força. Arrancou o maracá da viga num gesto brusco. O som seco das sementes chocando-se contra as paredes da cabaça cortou o silêncio da cabana como um chicote.
Shhh-clack.
Ele se voltou para Muñan. Não havia mais espaço para ervas amassadas ou chás mornos. O tempo das ervas acabara; agora era o tempo do espírito. Era guerra. Guerra de frequências.
Ele começou a bater o pé direito no chão. Tum. Tum. Tum. O ritmo cardíaco da terra, lento, constante, inevitável.
Sua voz começou baixa, um ronco gutural que nascia no estômago e empurrava o medo para fora das paredes de barro. Ele impôs a mão pesada sobre o esterno da menina, sentindo o coração descompassado, e deu o comando de realidade:
— Ho Dokôra, xute!
“Oh, Criador, tudo aqui é bom!” — sua mente projetava a intenção clara enquanto os lábios moldavam os sons antigos, vibrando com autoridade.
— Ñaman xuteh!
Afirmou que a água era boa, que a mata era boa. Que o mundo ao redor da menina estava em harmonia, e não em caos. Ele negava o veneno do rio. Ele negava o mercúrio e o diesel. Ele afirmava a pureza original das águas que corriam antes dos mapas existirem.
— Txóre xuteh!
“A mata é boa”. Ele negava o desmatamento, as máquinas amarelas, a poeira da estrada.
— Immi xuteh! Muñan… xuteh!
“O corpo é bom! Muñan está sã!”
E então, o tom de voz mudou. Deixou de ser acolhedor e afirmativo para se tornar uma barreira impenetrável, um escudo de som.
— Andl’aman… kon! Kwandomdo… kon! Oá!
“Espírito do mal… não! Dor… não! Assim seja!”
O ritmo mudou de velocidade. O som tornou-se contínuo, uma chuva torrencial de sementes, um chiado elétrico que preenchia cada centímetro cúbico da cabana. Kohen sentiu o calor subir pelo braço, invadir o peito, queimar a garganta como cachaça forte. O esquecimento rompeu-se como uma represa velha, mas o que vazou não foi água barrenta; foi memória. Palavras antigas, anteriores ao concreto, anteriores à pólvora, anteriores à dúvida.
Ele se debruçou sobre a menina. O rosto dela estava cinza, a boca entreaberta num esgar de dor. O desequilíbrio estava ali, instalado, um invasor teimoso, colonizando o corpo dela como os homens lá fora tentavam colonizar a terra.
— Immi xuteh! — Kohen gritou que o “corpo é bom”, sacudindo o maracá sobre o peito dela, desenhando espirais invisíveis no ar.
A menina reagiu, as costas arqueando-se na esteira.
— Muñan… xuteh! — Era a ordem para que a menina curasse.
Lá fora, passos pesados e rápidos. A porta da cabana, frágil barreira de madeira e cipó, foi empurrada com violência. A luz branca e dura de uma lanterna tática cortou a penumbra, cegando-os momentaneamente, expondo a intimidade do ritual à crueza da noite.
— Acabou o tempo, índio — a voz era de um dos jagunços, grossa e impaciente. Atrás dele, recortada contra a luz da lua e dos holofotes dos barcos, a silhueta do Doutor Silas. Ele vestia uma camisa de linho branco, impecável, uma afronta de limpeza no meio da lama e do caos. — Amaton, cadê a assinatura? Eu não tenho a noite toda.
Amaton olhou para Silas, a encarnação do poder e do dinheiro. Depois olhou para Kohen, um velho magro segurando uma cabaça barulhenta.
O maracá não parou. Shhh-clack. Shhh-clack. Shhh-clack.
— Andl’aman… kon! — Kohen virou-se lentamente para a porta. Ele não parou o canto, que afastava o mal da doença física e uma agonia que pairava no ar.
Ele não cantava mais apenas para a febre de Muñan. Ele cantava para a febre de Silas. Para a doença da ganância que consumia o mundo lá fora. O mal era um só. A bactéria no sangue da menina e o desejo de destruição na mente do homem branco eram a mesma desordem.
Silas deu um passo à frente, invadindo o recinto, tapando o nariz com um lenço perfumado para filtrar o cheiro de doença e fumaça. — Pare com essa barulheira primitiva. Meu prazo acabou. O trator já está ligado. Desocupem a área de inundação ou eu mando passar o trator por cima desta cabana com vocês dentro.
Kohen parou de bater o pé. O silêncio súbito foi mais alto que o barulho. Ele inspirou profundamente, enchendo os pulmões com o ar viciado, transformando-o em combustível.
— KRÓKON… MAKRAN!
O grito de Kohen foi um trovão físico: “Maldade… Fuja!”
Ele avançou contra Silas, não com uma lança, não com arco e flecha, mas com o som. Ele sacudiu o maracá a centímetros do rosto bem barbeado do latifundiário. A vibração era tangível, uma onda de choque. Era o som de mil cascavéis armando o bote, o som de árvores centenárias estalando antes de cair, o som do rio enchendo na época das chuvas.
Silas recuou, levando as mãos aos ouvidos como se o som das sementes fosse vidro moído. O ritmo desorientava, quebrava a lógica do dinheiro. O medo ancestral, aquele que mora no íntimo de todo ser humano, despertou nele. Não era medo de violência física; seus jagunços estavam armados. Era o medo do incompreensível. O medo diante de uma força que não constava em nenhuma escritura de terra.
— Tirem ele da minha frente! — Silas ordenou, a voz aguda, perdendo a compostura. — Atirem se for preciso!
Os jagunços hesitaram. As armas baixaram alguns centímetros. Eles eram homens da terra, criados ouvindo histórias de assombração e pajelança. O ritmo de Kohen era hipnótico, aterrorizante em sua certeza absoluta. Eram as balas de algumas armas contra todo o poder de uma floresta.
Não se atira num homem que está rezando com tal poder. Eles entenderam que derramar sangue sagrado traz maldição para a vida.
— Immi xuteh! Uchô xuteh! — Kohen avançava, expulsando-os com a barreira do som sagrado e afirmando que o corpo é são e que a terra é boa.
De repente, um ruído diferente rompeu a tensão do confronto. Não foi um tiro. Não foi um grito.
Foi uma tosse. Úmida, profunda, produtiva.
Tainá soltou um gemido que era meio riso, meio choro. Na esteira, Muñan virou-se de lado sozinha e vomitou uma bile negra e espessa no chão de terra — uma lama metálica. O mal materializado, expulso. Depois, a menina inspirou. Uma inspiração profunda, limpa, sibilante, como quem emerge após muito tempo debaixo d’água.
A febre quebrou instantaneamente. O suor frio na testa da menina evaporou, dando lugar a uma pele morna e viva. Ela abriu os olhos. Eram escuros, profundos como poços antigos, e focaram diretamente em Amaton.
— Ñamantuza… — ela sussurrou, a voz fraca mas cristalina. Ela queria água.
Amaton olhou para a menina revivida. Viu a vida onde segundos antes havia a morte certa. Depois, baixou os olhos para o papel em sua mão — o Termo de Anuência. A “salvação” que Silas oferecia em troca da terra sagrada.
O líder endireitou a coluna. A postura curvada pela derrota desapareceu, substituída pela verticalidade dos guerreiros. Ele amassou o papel lentamente, transformando o documento legal em uma bola de lixo insignificante.
— Vocês ouviram o Ndondom — disse Amaton, a voz calma, perigosa, despida de qualquer medo. — A terra é boa. A água é boa. E a doença… a doença está indo embora.
Ele jogou a bola de papel aos pés de bota lustrosa de Silas.
— Saiam da nossa aldeia.
Silas olhou para o papel no chão, incrédulo. Olhou para a menina respirando. E, por fim, olhou para Kohen, que continuava a agitar o maracá, agora num ritmo suave, de manutenção, de vigília. O latifundiário viu algo nos olhos daqueles homens que não estava lá quando o sol se pôs. Viu Krim Orutu. Viu Sangue Valente. Viu que não havia dinheiro, liminar ou ameaça que pudesse comprar o que acabara de acontecer naquela cabana.
— Vocês vão se arrepender — sibilou Silas, recuando para a escuridão, tentando recuperar os farrapos de sua dignidade. — O progresso passa por cima de tudo. O mundo não para por causa de um rezo.
— O progresso passa — respondeu Kohen, sem parar o ritmo, a voz serena. — A terra fica.
Silas girou nos calcanhares e sumiu na noite. Os jagunços o seguiram, olhando para trás, benzendo-se furtivamente.
O som das botas recuando foi engolido pela mata. O motor do barco ligou, rugiu com raiva e depois distanciou-se no rio, tornando-se pequeno, irrelevante, até desaparecer, engolido pelo canto das cigarras que voltava a encher o ar, reivindicando o espaço sonoro.
Kohen baixou o maracá. Seus braços tremiam, exaustos, o peso da idade voltando de uma vez. Ele se ajoelhou ao lado de Muñan. Tainá lhe ofereceu uma cuia com água fresca. Ele segurou a cabeça da menina e deu-lhe de beber. Ela bebeu, sôfrega, a vida reivindicando seu curso.
O cheiro de diesel ainda estava lá fora, impregnado na margem do rio. A batalha não tinha acabado; talvez nunca acabasse. As máquinas voltariam. Outros papéis viriam. Mas naquela noite, naquela cabana de pau a pique, o Ruído havia perdido. A Ordem Natural fora restaurada pela memória.
Kohen olhou para as próprias mãos, iluminadas pela brasa do fogo. Não eram mais as mãos de quem esqueceu. Eram as mãos de quem ordena.— Ho Dokôra — ele sussurrou para o silêncio sagrado do Criador, e a aldeia inteira pareceu responder no farfalhar das folhas. — Xuteh.

