I. O Osso do Mundo
A Serra de Ouro Branco não era feita de terra. Era feita de Uk’huá, a pedra branca, o osso exposto do mundo que rasgava o céu azul de Minas Gerais. Orutu sentia essa verdade na sola dos pés. Sua pele, endurecida por décadas de caminhada, lia a temperatura do itacolomito como quem lê um mapa de cicatrizes.
O sol do meio-dia batia no paredão e refletia uma luz tão violenta que parecia sólida. Para qualquer outro, aquela claridade feria os olhos. Para Orutu, era apenas a maneira da montanha dizer que estava viva.
Ele estava deitado na borda do abismo, invisível entre as touceiras de capim e as canelas-de-ema que insistiam em brotar da rocha nua. Ao seu lado, o velho Tahé parecia um pedaço de tronco seco esquecido pelo tempo.
— O vento mudou — sussurrou Tahé, sem abrir os olhos. — Sinto o cheiro deles.
Orutu inspirou. O ar rarefeito da altitude, geralmente limpo e frio, trazia agora um odor adocicado e metálico. Não era cheiro de bicho, nem de chuva. Era cheiro de Haranjúa — o homem branco. Cheiro de suor preso em tecido grosso, cheiro de pólvora e de ferro.
Lá embaixo, no vale do Rio das Velhas, o Arraial de Santo Antônio crescia como uma ferida gangrenada. De onde estavam, as casas coloniais pareciam carrapatos brancos na pele verde da mata. A mineração revirava o ventre da terra, e o rio, antes cristalino, sangrava um barro vermelho e espesso, sufocado pela ganância.
— Eles estão subindo a Trilha da Cabra — disse Orutu. Seus olhos negros, focados como os de um gavião, captaram o movimento antinatural na encosta.
Não eram mineradores comuns. Eram cinco homens. Vestiam gibões de couro acolchoado, carregavam bacamartes pesados e facões que brilhavam com malícia. Eram Capitães do Mato. Caçadores de gente.
Tahé abriu os olhos, leitosos pela idade, mas ainda cheios de astúcia. — Vieram terminar o que começaram com os Cataguás.
A menção ao antigo povo fez um arrepio percorrer a espinha de Orutu. Décadas atrás, aquelas serras pertenciam aos bravos Cataguás. Eram guerreiros fortes, duros como a pedra. Quando o branco chegou, os Cataguás desceram para a guerra. Bateram de frente. Peito nu contra chumbo. Lança contra canhão.
Morreram todos. O massacre dos Cataguás tingiu o solo de vermelho e abriu caminho para as minas.
— Os Cataguás eram rocha — murmurou Orutu, repetindo a lição que seu avô lhe ensinara. — A rocha bate no ferro e quebra. Nós somos Puri. Nós somos cipó. Nós somos neblina.
Essa era a razão de ainda estarem ali. Enquanto os Cataguás tentaram parar a história com força bruta, os Puris aprenderam a fluir pelas frestas que a história deixava. Eles se tornaram fantasmas na própria casa, vigiando do alto, inalcançáveis, intangíveis.
Mas hoje, os fantasmas precisariam assombrar os invasores.
II. O Peso e a Leveza
Os passos dos caçadores eram pesados. Tum. Tum. Tum. O som das botas ferradas esmagando os cristais de quartzo era uma ofensa ao silêncio sagrado do cume.
— Eles vêm para limpar o topo — disse Tahé. — Querem garantir que ninguém jogue pedras nos escravos lá embaixo. Querem a serra mansa.
Orutu tocou o feixe de flechas amarrado a tiracolo. Tinha poucas. E contra os gibões de couro grosso, madeira e osso fariam pouco estrago. O branco trouxe uma guerra de pesos desiguais.
— Não podemos lutar como Cataguás, Tahé. Se descermos para a troca de sangue, morreremos hoje.
— Então como lutaremos? — perguntou o velho, fixando os olhos no rapaz. — Você carrega o nome Orutu. O Valente. Mas a sua valentia não para o chumbo que voa mais longe que a flecha.
Orutu olhou para o terreno ao redor. O topo da Serra de Ouro Branco era um labirinto enganoso. À primeira vista, parecia um platô sólido. Mas sob o tapete de canelas-de-ema e do capim-gordura, a chuva de milênios havia esculpido furnas profundas — gargantas estreitas na rocha, algumas com vinte metros de queda, escondidas pela vegetação rasteira.
— Eles trazem o peso — disse Orutu, um sorriso triste curvando seus lábios. — Trazem o peso da roupa, o peso do ferro, o peso da maldade. A montanha não gosta de peso.
Ele se levantou, movendo-se com a leveza de quem pede licença ao chão antes de pisar. — Vamos para a Furna da Onça. Onde a terra dorme falso.
III. O Canto do Uruá
O grupo de caçadores alcançou o platô superior. Estavam suados, vermelhos, bufando como bestas de carga. O ar rarefeito punia seus pulmões acostumados à fumaça das vilas. O líder, um homem vasto com barba ruiva e olhos de vidro azul, parou para limpar o suor da testa.
Foi quando ele viu Orutu.
O índio estava parado sobre uma laje de pedra, a trinta metros de distância. Estava imóvel, uma estátua de bronze contra o céu impossivelmente azul. Atrás dele, o terreno parecia plano e convidativo, coberto por um tapete verdejante.
— Ali! — gritou o líder, a voz rouca quebrando a paz do cume. — O selvagem!
Os outros quatro homens ergueram os bacamartes. O estampido seria inútil àquela distância, e eles sabiam disso. Recarregar demorava muito. Eles precisavam chegar perto. Precisavam da certeza.
— Peguem vivo! — ordenou o líder, um sorriso cruel distorcendo o rosto. — Vamos arrastá-lo até a vila para mostrar o que acontece com quem assombra a mineração.
Orutu não correu. Ele levou as mãos à boca, segurando o Uruá.
Não era uma ferramenta de cura. Era uma flauta de guerra, feita da tíbia de um veado-catingueiro e ponta de chifre. Um instrumento que não foi feito para melodias, mas para imitar os sons da mata profunda.
Orutu soprou.
Fiuuuuu… Raaahr!
O som foi um lamento agudo que se transformou em um rosnado grave. Parecia o grito de uma onça ferida, amplificado pelas paredes de pedra da serra. O som bateu no paredão côncavo e voltou, envolvendo os caçadores, vindo de todos os lados, desorientando os sentidos.
Era um som que dizia: Vocês são estranhos aqui.
O líder hesitou por um segundo, buscando a origem do eco, mas a raiva falou mais alto que a prudência. A arrogância da conquista o cegava para os perigos do terreno.
— É só um bugre com um apito! — berrou ele. — Peguem ele! Agora!
Eles correram. A carga de cavalaria sem cavalos. Botas pesadas batendo na rocha, olhos fixos na presa, ignorando o chão que pisavam.
Orutu permaneceu. Ele viu a linha invisível no chão, marcada apenas por uma mudança sutil na cor do capim. A fronteira entre a rocha sólida e o vazio.
Trinta metros. Vinte metros. A terra vibrava com a corrida desajeitada dos invasores. O Uruá continuou a cantar, um zumbido hipnótico que mascarava o som oco dos passos.
Dez metros.
O líder foi o primeiro. Ele pisou com força total sobre o tapete de raízes entrelaçadas que cobria a fenda. Durante séculos, aquela ponte vegetal sustentou raposas, lobos-guarás e índios de passo leve.
Mas não sustentava a ganância.
Crac.
O som foi seco, definitivo. O chão simplesmente deixou de existir.
O líder não teve tempo de gritar. Seus olhos se arregalaram em uma surpresa muda enquanto a gravidade cobrava seu preço. Ele desapareceu na garganta da terra, engolido pela escuridão da furna. O baque do corpo contra as pedras lá embaixo foi um som úmido, final.
Os dois homens que vinham no encalço tentaram parar. Mas a inércia do peso é traiçoeira. As botas de sola lisa escorregaram no cascalho solto da borda.
Um deles conseguiu se jogar para trás, caindo de costas, o rosto branco de pavor. O outro, menos sortudo, tropeçou nas raízes rompidas da armadilha. Ele balançou os braços, buscando apoio no ar vazio, e encontrou apenas o olhar impassível de Orutu.
Então caiu. O grito dele foi longo, ecoando pelas paredes da fenda até ser silenciado pelo fundo de pedra.
IV. Pedra em Vermelho
O silêncio voltou ao topo do mundo. Um silêncio pesado, constrangido.
Os três caçadores restantes estavam caídos ou agachados a poucos metros da borda da furna. Eles olhavam para o buraco negro que havia devorado seus companheiros. Depois, lentamente, ergueram os olhos para Orutu.
O Puri tinha baixado a flauta. Em sua mão, agora, estava o arco. Uma flecha apontava diretamente para o coração do homem mais próximo.
Mas Orutu não atirou. Não precisava.
Ele viu o terror nos olhos daqueles homens. Não era medo de morrer. Era um medo antigo, primitivo. O medo de quem percebe que a Terra não é um cenário passivo, mas uma entidade que tem dentes. Eles tinham vindo caçar um homem e foram caçados pela montanha.
— Haranjúa… Kon — disse Orutu. A voz saiu baixa, mas o vento levou as palavras até eles. — O homem branco… não.
Ele apontou para o vale lá embaixo. Um gesto simples de expulsão.
Os sobreviventes não discutiram. Não pegaram as armas caídas. Eles se levantaram trêmulos, andando de costas, com medo de virar e expor a nuca, com medo de que o chão se abrisse novamente sob seus pés. Quando alcançaram a rocha segura, viraram-se e correram. Desceram a serra tropeçando, rasgando as roupas, fugindo do fantasma guardião da Serra de Ouro Branco.
Tahé saiu de trás de um bloco de pedra. O velho caminhou até a borda da furna e olhou para baixo.
Lá no fundo, na penumbra fria, o branco imaculado do quartzito estava manchado de vermelho vivo.
— A terra comeu — disse Tahé. Não havia alegria em sua voz, apenas o reconhecimento de um fato natural.
Orutu guardou o Uruá. Ele sentia o cansaço nas pernas. A tensão do confronto se dissipava, deixando um gosto amargo na boca.
— Os Cataguás tentaram parar o vento com as mãos — disse Orutu, olhando para o horizonte onde as nuvens começavam a se acumular. — Nós deixamos o vento passar e derrubar a árvore podre.
— Eles vão voltar — alertou Tahé. — Ouro Branco vai crescer. O Arraial vai virar cidade. Eles vão trazer máquinas maiores.
— Vão — concordou Orutu. Ele se agachou e tocou a pedra fria com a palma da mão, sentindo a vibração antiga, a mesma que seus ancestrais sentiram mil anos antes. — Eles vão vir. Vão cavar. Vão sujar o rio. Vão esquecer quem são.
Ele olhou para o sangue na pedra e depois para o céu infinito.
— Mas a pedra é dura, Tahé. E o tempo do homem branco é curto. A ambição deles é como fogo de palha; queima rápido e vira cinza. Mas a montanha… a montanha permanece.
Orutu se levantou, uma silhueta solitária e resistente contra o entardecer.
— Nós somos a memória da montanha. Enquanto houver um Puri para lembrar onde pisar, a serra não será deles. O progresso deles passa. A Serra, não.
A neblina começou a subir do vale, branca e silenciosa, cobrindo as pegadas, cobrindo o sangue, cobrindo a história, até que não houvesse nada além do topo branco flutuando no mar de nuvens, eterno e intocável.

