I. O Peso do Silêncio
Ayrumã sabia que a avó tinha ido embora antes mesmo de tocar seu pulso. O ar dentro da cabana mudara de textura; deixara de vibrar com a respiração rouca e ritmada de alguém dormindo para assumir a imobilidade pesada de pedras e troncos caídos. O corpo estava ali, uma casca de carne enrugada, mas a Laman — a alma vibrante que animava aqueles olhos — já havia se encantado, iniciando sua jornada perigosa para fora da matéria.
Ele estava ajoelhado na terra batida, segurando a mão dela. Aquela mão, agora fria e com o peso morto da argila molhada, era a mesma que, durante trinta invernos, debulhara milho para ele, trançara fibras de tucum e curara suas febres infantis com banhos de xapuko amassado. Ele ainda podia sentir o cheiro acre daquelas ervas impregnado na pele dela, uma assinatura de cura que a morte ainda não conseguira apagar.
— Ayrumã… — A voz de Potyra, sua esposa, veio da entrada da oca como um sussurro urgente.
Ele se virou. Potyra trazia uma cuia grande cheia de barro vermelho, recém-amassado e úmido. Não era barro qualquer; era a argila de vedação da igaçaba, a urna fúnebre.
— O sol está tocando a copa das árvores — avisou ela, os olhos baixos, respeitosos, mas cheios de medo. — Não podemos demorar.
Ayrumã fechou os olhos e inspirou fundo, tentando engolir o nó na garganta que tinha gosto de pedra fria. A dor pedia pausa. Pedia que o mundo parasse, nem que fosse por um fôlego, para ele entender que agora era órfão de guia.
Mas a Lei da Mata não dava luto aos vivos. Se ele demorasse, o amor viraria assombração. Se ele chorasse alto, a alma de Nuaré, confusa e recém-nascida na morte, ficaria presa ao som do lamento. Ela se tornaria o temido Quelem — a alma perdida que vaga rondando a aldeia, buscando o caminho de casa que já não existe mais, adoecendo os parentes de saudade.
— Eu sei — disse ele, a voz saindo mais velha do que ele se sentia. — Traga a igaçaba.
II. A Semente Humana
O ritual de dobrar o corpo foi a violência necessária que Ayrumã jamais esqueceria. Não havia a serenidade dos sonos; havia a rigidez do fim.
Potyra rolou a grande urna para o centro da cabana. A igaçaba era antiga, pintada com linhas pretas e vermelhas que imitavam a pele das cobras, feita para proteger o que estava dentro e avisar ao que estava fora.
Ayrumã teve que forçar os joelhos de Nuaré contra o peito dela. O som seco das articulações rígidas estalando — crac — soou como um galho partindo dentro da pequena cabana silenciosa. Seu estômago revirou, mas suas mãos não pararam.
— Perdoe-me, avó — sussurrou ele, o suor pingando sobre a pele cinzenta dela. — Você precisa ficar pequena de novo. Pequena como uma semente, para a terra te aceitar de volta.
Uma memória invadiu sua mente, nítida e dolorosa: ele criança, e ela o ensinando a brincar de imitar o gwara, o lagarto que se esconde nas frestas das pedras. Ela ria, os olhos sumindo entre as rugas de felicidade: “Você cabe em qualquer lugar, meu lagartinho”, ela dizia. Agora, era ele quem a forçava a caber no ventre de barro.
Com a ajuda de Potyra, desceram o corpo amarrado para dentro da urna. Nuaré, a matriarca que mantinha a tribo unida com sua sabedoria ranzinza e carinhosa, agora era apenas um volume silencioso contido na cerâmica.
Ayrumã olhou para o pescoço dela. O colar de sementes pretas de saboneteira, intercaladas com grandes olhos-de-boi vermelhos. Ela nunca o tirava. Dizia que aquelas sementes duras eram para dar resistência ao espírito nas caminhadas longas.
A mão de Ayrumã tremeu, pairando sobre o adorno. A vontade de arrancar o colar era imensa. Guardá-lo. Ter um pedaço físico dela para segurar quando o medo do futuro batesse à noite.
Mas ele recolheu os dedos rapidamente, como se tivessem tocado em brasas. Não roube dos mortos, a voz dela ecoou em sua memória, severa. O que é meu, vai comigo. Se você ficar com o que é meu, eu volto para buscar.
III. A Merenda da Viagem
Potyra entregou a ele uma pequena cabaça selada com cera. — É o último favo — disse ela.
Ayrumã quebrou o selo. O cheiro doce e forte do mel silvestre invadiu o ar viciado da morte. Era um mel escuro, de abelha brava. A comida favorita de Nuaré. Em tempos de escassez, aquele mel calaria a barriga de três crianças, mas hoje ele tinha um propósito maior.
A viagem de Nuaré era longa. Ela precisava atravessar a escuridão para chegar ao Bosque das Sapucaias — o lugar onde as árvores nunca perdem as folhas e a caça não foge. Mas o caminho até lá era uma trilha cheia de sombras e espíritos famintos. Se ela tivesse fome no meio da estrada, ela voltaria para a aldeia. E uma avó que volta não traz beijos; traz febre.
Ayrumã depositou o mel cuidadosamente sobre os joelhos da avó, dentro do vaso, ao lado de uma cuia com água.
— Coma bem, Nuaré — ele disse, e desta vez usou o tom de voz firme que ela sempre exigira dele, o tom de um líder, não de um neto. — O mel daqui acabou. O mel do Bosque é doce e corre como rio. Não olhe para trás. Não sinta saudade da nossa comida.
Ele pegou o barro que Potyra trouxera. Com as mãos trêmulas, começou a selar a tampa da igaçaba, alisando a argila vermelha, fechando a fresta entre os mundos. Enterraram-na ali mesmo, no chão batido onde ela pisara e comandara por anos, devolvendo-a à terra que a sustentara.
IV. O Incêndio da Memória
Quando saíram da oca, a aldeia inteira já estava pronta. Cestos carregados nas costas, redes enroladas, macacos de estimação amarrados com cordas de embira. O silêncio era absoluto, carregado de tensão. As crianças sabiam que não podiam chorar. O medo nos olhos delas espelhava o pavor secreto de Ayrumã. Sem Nuaré, quem saberia os caminhos da cura? Quem leria os sinais das nuvens?
Agora, o peso do céu estava sobre ele.
Ayrumã pegou a tocha. O Pote — o fogo vivo — crepitava na ponta da madeira, impaciente, alheio à tristeza. Ele olhou para a cabana de pau a pique uma última vez. Ali dentro estavam as memórias de sua infância, as marcas de carvão na parede onde mediam sua altura, o cheiro de fumo e vida.
Mas queimar a casa era lei. Era amputar o passado para salvar o futuro. Era dizer violentamente ao espírito: Acabou. Não há teto para você aqui. Sua casa sumiu.
Ele jogou a tocha na palha seca do teto.
As chamas agarraram a cobertura com voracidade, soltando um rugido de destruição. O calor bateu no rosto de Ayrumã, secando instantaneamente as lágrimas que ele se recusara a deixar cair. A fumaça subiu preta e densa, um pilar separando o mundo dos vivos do mundo dos mortos.
— Ndomo! — ele gritou a ordem de partida, sua voz cortando o som do fogo. — Vamos! Partir! O fogo avisa que aqui não mora ninguém!
Eles viraram as costas. A regra era clara: quem olha para trás, convida a alma a seguir. Eles caminharam rápido, quase correndo, penetrando na Txori, a floresta densa que agora parecia observar cada passo deles com mil olhos ocultos. Ayrumã ia à frente, abrindo o mato com seu machado de pedra polida, sentindo o peso da liderança esmagar seus ombros mais que qualquer carga física.
V. O Visitante na Trilha
A noite caiu abrupta, trazendo o frio e os sons que arrepiam a pele. Eles pararam perto de um riacho, longe o suficiente para não sentir o cheiro da fumaça, longe o suficiente para despistar a morte.
Enquanto Potyra armava a rede das crianças entre duas árvores, Ayrumã ficou de vigia na borda da clareira improvisada. Seu coração estava inquieto, batendo descompassado contra as costelas. Ele sentia que tinha esquecido algo. Teria fechado bem o vaso? Teria dado mel suficiente? E se ela ainda estivesse com fome?
Um som de folhas esmagadas. Pesado. Perto demais.
Ayrumã levantou o machado, os músculos tensos como cordas de arco.
Do meio da escuridão, onde a mata era parede sólida, dois olhos brilharam refletindo o pouco luar. Amarelos. Penetrantes.
Uma onça-parda. Não era um monstro gigantesco, mas uma fêmea velha, com cicatrizes no flanco e um andar manco, porém absolutamente silencioso.
Ela parou a cinco passos dele. O cheiro dela era de almíscar, chuva e terra molhada.
Ayrumã prendeu a respiração até o peito doer. Ele viu, no pescoço do animal, uma mancha mais escura no pelo, um desenho irregular de pintas negras que lembrava, estranhamente, o trançado de um colar de sementes de saboneteira.
A onça não rosnou. Ela o encarou com uma familiaridade desconcertante. Havia cansaço naqueles olhos, mas também uma paz profunda e antiga. Era o olhar de quem já tinha comido, de quem estava satisfeita e pronta para seguir viagem.
Ayrumã baixou o machado lentamente. O medo gelado se dissolveu, dando lugar a uma compreensão quente no peito. O espírito não estava perdido; estava transmutado.
— O mel estava bom? — ele perguntou à fera, a voz embargada, falando com o que havia por trás dos olhos do bicho.
A onça piscou lentamente. Um gesto quase humano de assentimento. Depois, virou-se com a certeza de dever cumprido e sumiu na espessura da noite, seguindo o curso do rio para o alto da serra, para longe deles, em direção ao topo do mundo.
Ayrumã ficou ali, sozinho no escuro, mas pela primeira vez no dia, não se sentiu órfão.
Ele voltou para junto de Potyra e das crianças.
— O que foi? — ela perguntou, vendo a arma abaixada e o rosto dele sereno. — Era o Quelem? Era o espírito ruim?
Ayrumã deitou-se na rede, olhando para as estrelas que apareciam por entre as copas das árvores gigantes.
— Não — disse ele, fechando os olhos e sentindo o sono dos justos chegar. — Era apenas a avó. Ela veio dizer que a merenda foi boa. Ela seguiu viagem.
E naquela noite, Ayrumã dormiu, pois sabia que a morte não era o fim do caminho, era apenas uma mudança de território.

